CRÍTICA SEM SPOILERS
É sempre interessante perceber que ainda há o que acrescentar de novo ao extenso universo dos serial killers. O recente slasher In a Violent Nature (2024) provou isso ao trabalhar sua ótica através da perspectiva do próprio assassino. Agora é a vez de um dos realizadores mais controversos dos últimos tempos, também conhecido como o "pai dos plot twists", mostrar que essa mesma perspectiva também pode ser explorada dentro de um dinâmico suspense envolto em um planejado jogo de gato e rato. No novo filme escrito e dirigido por M. Night Shyamalan, que, como sempre, se passa na Filadélfia, acompanhamos o bombeiro Cooper (Josh Hartnett) levando sua filha adolescente Riley (Ariel Donoghue) para um show de uma famosa artista pop chamada Lady Raven (Saleka), por quem Riley é aficionada. Ao notar que centenas de políciais das mais diversas unidades se fazem presente em todo o entorno do imenso estádio, Cooper começa a se preocupar. Em pouco tempo, ele descobre, com um vendedor chamado Jamie (Jonathan Langdon), que uma armadilha foi elaborada por uma criadora de perfis do FBI chamada Dra. Josephine Grant (Hayley Mills) para capturar um perigoso serial killer conhecido como "O Açougueiro". Deste ponto em diante, tudo deixa de ser um agradável momento entre pai e filha para dar lugar a uma busca incessante pela liberdade.
Shyamalan, que este ano já havia produzido o longa de estréia de sua filha Ishana na direção, Os Observadores (2024), se mostra sem dúvidas digno do título de pai do ano ao elaborar um thriller divertido e carregado de bom humor que se passa em um show apresentado por sua outra filha, Saleka, que por sua vez já esbanjava talento com suas músicas temas de outros trabalhos de seu pai, incluindo a série "Servant" (2019-2023), original da AppleTV+. Não satisfeito em simplesmente ajudar a divulgar o trabalho de suas descendentes (nos bastidores ou nos palcos), o diretor ainda se propõe a aumentar sua filmografia assinando o roteiro e a direção de um longa calcado em inúmeras conveniências de roteiro que prometem dividir o público. Algo evidente em Armadilha desde os materiais de divulgação do filme, é que Cooper se trata do assassino. Isso não é um spoiler, uma vez que o roteiro deixa isso claro desde os primeiros minutos do filme. É necessário falar sobre isso para que possamos compreender os objetivos e a abordagem da narrativa perante essa ótica do próprio protagonista (o serial killer). Este é um daqueles filmes que demandam que o espectador esteja preparado antes de se colocar diante das telas. Neste caso, o público deve estar munido de duas ferramentas essenciais para que o mesmo possa tirar proveito de tudo que é proposto aqui.
A primeira delas é a completa e total suspensão da descrença. Ainda que o filme não apele para a influência do sobrenatural e até pareça ser pé no chão por conta de sua temática, é importante não supervalorizar a importância da lógica aqui, afinal o próprio longa não se leva a sério e contém diversos alívios cômicos interessantes que deixam isso claro. Como o próprio pôster do filme faz questão de evidenciar, não se trata de um convencional filme de suspense, e sim de uma "experiência". A segunda ferramenta, é a noção de que o diretor parece ter felizmente abandonado sua obsessão pelos plot twists. Desde seu longa anterior, vimos que a expectativa errada pode frustrar parte do público que anseia por uma reviravolta surpreendente no final. É importante não nos tornarmos reféns dessa expectativa e sabermos encarar a obra pelo que ela é, e não pelo histórico do diretor. A força do filme, pelo menos nos dois primeiros atos, se constrói partindo das tentativas de Cooper em bolar um plano para escapar do estádio e não ser pego pelos policiais, enquanto tenta parecer um dedicado pai preocupado com o bem estar de sua filha, sem deixar transparecer seu nervosismo. Tudo isso é regado a diversas músicas dançantes da cantora Lady Raven em sua apresentação ao vivo. Inclusive, é aqui que reside outro grande trunfo da obra de Shyamalan: o fato de se aproveitar do sucesso do recente documentário musical "The Eras Tour", de Taylor Swift (diva pop com o qual o diretor tece vários paralelos com Lady Raven, envolvendo o fascínio do público) para trazer um curioso e ousado experimento, misturando elementos de um filme de suspense com um show musical, fazendo deste um dos longas que mais se destoa de toda sua filmografia.
Shyamalan demonstra grande segurança na direção de seu longa, com uma boa dosagem dos momentos de apreensão de Cooper com cenas de Riley e do público se divertindo ao som de Lady Raven. Os movimentos de câmera e toda a condução do diretor nos colocam completamente dentro do show e de todos os acontecimentos, enquanto nos sentimos na pele do assassino, e o medo de ser descoberto. Seria exagero dizer que torcemos para que Cooper consiga escapar, afinal de contas ele é responsável por assassinar brutalmente diversas vítimas, mas a interpretação singular e expressiva de Josh Hartnett nos transporta com facilidade para as intenções de seu sagaz personagem. O diretor aqui não está preocupado em mostrar as atrocidades cometidas por um serial killer. Isso tudo já conhecemos bem, afinal a mídia e todos os slashers já cumprem com esse papel. O interesse de Shyamalan está exatamente em nos fazer acompanhar os possíveis momentos finais de liberdade de um assassino calculista que internaliza suas emoções e que se vê submisso aos seus instintos de sobrevivência.
O maior problema da obra está em sua metade final, que acaba por não aproveitar o ritmo inquietante que construiu tão bem durante a primeira hora de filme. Aqui, o diretor parte para uma transição temporária de protagonismo que por um lado colhe alguns bons frutos ao nos mostrar o potencial de Saleka como atriz, visto que Lady Raven ganha relevância para o enredo, mas que por outro lado representa uma considerável quebra no envolvimento do público. Além disso, algumas decisões repetitivas da trama tornam o roteiro previsível, até mesmo o seu final. Tentando se alongar mais do que deveria, Armadilha nos decepciona exatamente por ter entregue uma introdução envolvente e um desenvolvimento competente, mas não sabendo como concluir sua história que até então se mostrava repleta de possibilidades.
Shyamalan mostra que ainda sabe como atrair e agarrar o interesse do espectador do início ao fim (ou próximo dele), mesmo diante de uma premissa improvável e totalmente original, mas ainda se demonstra distante da genialidade dos roteiros que outrora o fizeram ser reverenciado. De toda forma, sua nova obra se mostra um entretenimento cativante na maior parte do tempo e não deve ter grandes dificuldades de encontrar seu público.
NOTA DO CRÍTICO: ★★★☆☆ Título Original: Trap Data de Lançamento: 08/08/2024 (Brasil) Direção: M. Night Shyamalan Distribuição: Warner Bros. Pictures Brasil Elenco: Josh Hartnett como Cooper
Ariel Donoghue como Riley
Saleka Night Shyamalan como Lady Raven
Alison Pill como Rachel
Hayley Mills como Dra. Josephine Grant
Jonathan Langdon como Jamie
Comments